sábado, 10 de outubro de 2009

ESSA GENTE SEM EIRA NEM BEIRA

Geraldo Lima

Do outro lado da rua, bem em frente à janela do meu apartamento, alguns pés-inchados arrancharam embaixo de uma árvore. Levaram para lá o que sobrou de dois sofás velhos – com certeza, fedorentos -– e outros cacarecos. Até uma bandeira dos sem-terra tremulava num dos galhos – digo “tremulava” porque a polícia baixou lá com um camburão, um trator e os despejou da casa improvisada. Que intenção eles tinham ao colocar a bandeira do MST ali é que me aguça a curiosidade. Em suas mentes ébrias passariam ainda arroubos revolucionários? Que utopia almejam movidos pelo álcool e pelo ócio?

Quem escreveu um texto magistral sobre esses tipos sem eira nem beira foi o contista curitibano Dalton Trevisan. No conto Cemitério de elefantes, que dá título ao livro, um grupo de bebuns passa o dia próximo a um rio catando e comendo ingá, ou então pedindo aos pescadores algum peixe. O conto se inicia assim: “À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro – ali os bêbados são felizes”. O autor os caracteriza como elefantes que saem “arrastando os pesados pés” em busca de comida. No grupo de bebuns que estava arranchado em frente ao meu apartamento há um sujeito que anda assim, arrastando os pés como um elefante ferido. O Gilson, o mais conhecido do grupo, já esteve até em cadeira de rodas. Andava pra cima e pra baixo empurrado por um dos companheiros de pinga e cirrose. Um belo dia, como num desses anunciados milagres das igrejas pentecostais, apareceu andando como se nunca tivesse dependido de uma cadeira de rodas. Hoje voltou a depender de um carrinho de supermercado que lhe serve de andador.

No conto do Dalton, a comunidade local até adotou os bêbados e “os considera animais sagrados, provê às suas necessidades de cachaça e pirão”. De certa maneira, eles estão integrados à rotina da cidade. Fazem parte da sua paisagem. Em outras palavras: todos se acostumaram com a presença daquelas vidas em lenta decomposição. Não sei se este é caso dos nossos pés-inchados. Há tempos circulam pela Quadra 14, mudando só o lugar de dormir. (Agora mesmo, no momento em que escrevo esta crônica, estão arranchados embaixo de uma árvore que cresceu ao lado da grade do prédio onde moro.) Fazem parte da paisagem. Nós nos acostumamos com eles. Por que foram então despejados? Creio que, pela algazarra que faziam, tenham passado dos limites e incomodado a vizinhança. Daí o camburão, o trator, enfim, a força policial.

Quando eu tinha meus vinte anos de idade, escrevi uma peça de teatro intitulada “No gargalo”. Nessa peça, um grupo de pés-inchados tentava livrar-se do assédio de um PM que queria, por todos os meios, tirar-lhes a garrafa de pinga. Era o finzinho da ditadura e tinha eu, na prepotência da juventude, a intenção de provocar o regime moribundo. O engraçado é que não havia ainda, naquele tempo, esses grupos de bêbados acabando-se cotidianamente no álcool ( só tempos depois, já morando em Sobradinho, é que fui me deparar com essa realidade). De onde me veio então a inspiração para escrever a peça? Veio-me de um casal de bêbados que andava pelas ruas de Planaltina, entrando nos bares para pedir pinga. A mulher, apelidada de “29” (nome de uma das cachaças mais populares da época), é que mandava. O marido apenas a seguia obediente. (Soube que ela, tempos depois, surtou e tirou a roupa em plena rua.) Há alguns anos escrevi um conto em que um pé-inchado vai tombando pela rua até sucumbir de vez embaixo de uma árvore. Já puderam observar minha fixação por esse tema da vida que se degrada pela ação do álcool. A presença desses seres decadentes, à margem de tudo, tem me acompanhado desde que me propus a difícil tarefa de ser escritor. Penso que a vida é algo muito frágil, e todos nós estamos sujeitos a essa lenta queda no nada.

(Texto publicado originalmente no Jornal de Sobradinho)

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