sábado, 19 de dezembro de 2009


O ANIMAL QUE PENSA
                                    Fernando Marques
Se você procurar informações em livros ou na internet sobre o dramaturgo romeno-francês Eugène Ionesco (1909-1994), um dos autores mais férteis do século 20, algumas das fontes dirão que ele nasceu em 1912 e não em 1909. Assim, ao lembrar agora o seu centenário, estaríamos cometendo algo que, em jargão de jornalistas, se chama “barriga”, ou seja, erro, informação involuntariamente falsa. Não é o caso, porém.
Outras fontes não apenas confirmam a data de 26 de novembro de 1909, como explicam a origem do engano. A historinha: quando o crítico Jacques Lemarchand apontou, no início dos anos 1950, o aparecimento da tendência que viria a ser chamada de Teatro do Absurdo, assinalou entre seus “jovens autores” as figuras de Ionesco e Samuel Beckett. O já não tão garoto Ionesco, por pilhéria, teria então avançado a data do próprio aniversário em três anos – para corresponder ao adjetivo “jovem”. A piada pegou, e muita gente foi atrás, repetindo a mentira.    
Nascido em Slatina, Romênia, de pai romeno e mãe francesa, Eugène Ionesco radicou-se na França durante a Segunda Guerra Mundial (país onde vivera na infância) e fez carreira em Paris, tendo a obra divulgada, no decorrer da década de 1950, noutros países da Europa e, depois, de todo o mundo. Produziu 30 peças teatrais, entre elas A cantora careca, A lição, As cadeiras e O rinoceronte, além de relatos ficcionais e ensaios – algumas de suas ideias sobre o teatro e a condição humana são luminosas. A obra de Ionesco também apresenta aspectos frágeis ou, quando menos, controversos.  
Ele não fugiu às polêmicas, nas peças ou fora delas. Debateu publicamente com críticos, a exemplo do bate-boca travado em 1958 com Kenneth Tynan, comentarista do jornal londrino Observer, que o acusou de negar não apenas o realismo, mas a própria realidade. O dramaturgo respondeu a Tynan afirmando que “renovar a linguagem é renovar a concepção do mundo”. Ionesco faria restrições a Bertolt Brecht e a Jean-Paul Sartre, representantes de um “conformismo de esquerda”. E, por conta de O rinoceronte, peça com a qual alcançou as grandes salas em 1959, chegou a ser chamado de reacionário. No Brasil, Nelson Rodrigues ouviria insultos de mesmo tipo. 
Privilegiando as metáforas, Ionesco obstinadamente rejeitava a redução dos seres humanos a seus condicionamentos sociais; tais condicionamentos, contudo, possuem peso decisivo na vida breve dos indivíduos. Contra essa pretensa evidência, argumentou que “nenhuma sociedade tem sido capaz de abolir a tristeza humana, nenhum sistema político pode nos livrar da dor de viver, de nosso medo da morte, de nossa ânsia pelo absoluto; é a condição humana que dirige a condição social, e não o contrário”.
Por palavras como essas, citadas pelo crítico Martin Esslin no clássico O teatro do absurdo, de 1961 (livro que deu nome à tendência), alguns o atacaram. Ao que parece, não o entenderam. Seu personagem Bérenger, de O rinoceronte, fala pelo dramaturgo ao dizer “não” às atitudes de paquiderme, isto é, de massa e de manada. Recusando-se a se transformar em rinoceronte, quando todos à sua volta se animalizam, Bérenger insiste na condição humana, mesmo precária, gritando ao final da história: “Eu não me rendo!”. 
Antienredos
A primeira peça do autor, A cantora careca, encenada em maio de 1950, em Paris, para plateias minguadas, deixa a impressão de simples brincadeira futurista. Seu nexo limita-se ao registro satírico, farsesco, da vida burguesa na Europa em meados do século passado. O autor ambicionava comunicar muito mais, tendo falado, a respeito da comédia, em denúncia dos vazios da linguagem e da própria experiência vital.      
Em cena, vemos um casal inglês que receberá a visita de outro casal, também britânico – o formalismo dos ingleses, verdadeiro ou suposto, serve à caricatura do formalismo burguês em geral. A lógica acha-se desmoralizada; tudo o que se diz e se faz é não apenas absurdo, mas pueril, perfeitamente inútil. A ação corre em círculos, e nenhuma palavra conduz a qualquer mudança importante nas situações, que se sucedem sem evoluir. Tornado farsa, o enredo nega-se a caminhar, a ser enredo, enfim.
O dramaturgo enfatiza a vanidade da vida para as classes média e alta: a segurança, o decoro, a sensatez converteram-se numa prisão. Mas, em lugar de crítica articulada, ainda que por meios não convencionais, a essas classes e à sua mentalidade, o que temos é antes derrisão, deboche, em atitude que lembra a do urinol de Duchamp, antiobra de arte sarcástica. Embora divertido e saudável, o deboche soa superficial, ao menos à mera leitura.
A segunda peça de Ionesco aparece no ano seguinte, chama-se A lição e é mais madura que o texto de estreia. A subversão da lógica, sobretudo nas falas (depois também nas ações), adensa-se buscando sentido mais amplo e mais cruel, o da opressão do professor sobre a aluna. A menina de 18 anos por sua vez exerce, talvez involuntariamente, a tirania de sua juventude sobre o mestre maduro e solitário, efeito figurado nos olhares lúbricos que ele deixa escapar de vez em quando.
Trata-se, como se verá depois, de um lobo, no mais literal e também no mais absurdo dos sentidos. No desfecho saberemos que a moça é a 40ª. estudante que, nesse dia, o mestre recebeu em sua casa, terminando por matar as meninas e por comer a carne adolescente de todas elas. Uma espécie de conto de Chapeuzinho Vermelho, mas desmesurado, de uma poesia extremada e pérfida.
O adensamento expressivo em A lição deve-se à economia dos meios em jogo: são apenas dois personagens (um terceiro papel, o da Empregada, cumpre tarefas auxiliares); a relação entre eles pode agora, mais que na Cantora, ascender ao plano da alegoria ou da metáfora. Fábulas simples que se desdobram, por exagero, até o infinito irão caracterizar o teatro de Ionesco.  
Pesadelos cômicos
Uma vez abolido o realismo, o significado torna-se incerto, e é sempre lançado para além das situações ficcionais consideradas em si mesmas; para espectadores ou leitores, não há mais apoio possível na verossimilhança, descartando-se o cotejo direto daquelas situações com as da realidade. Paralelos entre ficção e vida permanecem válidos, mas já não se toma por base o real, convencionado segundo certa percepção média dos fenômenos.
A arte de vanguarda naquele momento pretendia explorar não o personagem mediano, normal (dotado de uma falha de caráter que ele poderá superar no decorrer do enredo), mas o disforme, o monstruoso. Esse tipo de criaturas não se altera, não é capaz de mudar – títeres são sempre iguais a si mesmos –, fato moral e estético do qual decorrem os enredos circulares. O drama do Absurdo tende assim ao supra-histórico, ao que está à margem da história regular, factual: nas peças de Ionesco, Beckett, Genet, Arrabal, habitamos o plano perene do mito e dos pesadelos humorísticos.
A grande peça, entre as três primeiras obras do autor, responsáveis por consagrá-lo, é As cadeiras (de fato, o quarto texto escrito pelo dramaturgo, mas o terceiro a ser encenado). A mesma técnica do acúmulo usada na construção das outras obras ressurge nessa peça, com eficácia singularíssima. Nota-se provável dívida para com os expressionistas.
O argumento em As cadeiras é de uma fantasia extraordinária: um casal de velhos, ele com 95 anos, ela com 94, resolve receber pessoas – algumas socialmente importantes, como o concupiscente General – para uma conferência espetacular (na qual vão se revelar verdades insuspeitadas), a ocorrer na pequena ilha onde vivem, cercados de água até o horizonte. Isolados, jogam suas derradeiras esperanças na recepção que preparam.
Acontece que todos os convivas do evento são invisíveis para o público. Temos notícia de sua presença somente por meio das cadeiras que se multiplicam e das palavras ditas pelos atores encarregados de interpretar os dois idosos; eles têm de dar a ver um número enorme de personagens, sem que estes apareçam materialmente por um instante sequer. Há uma terceira figura, de carne e osso como os velhos, que surgirá no desfecho: é o conferencista, malignamente caracterizado como surdo-mudo. O texto aposta na habilidade dos atores e na imaginação do público.   
O teatro brasileiro faz contato com a obra de Ionesco a partir de 1956, quando Jacques ou A submissão é encenada em São Paulo. O rinoceronte chegaria ao país pelas mãos do diretor português Luís de Lima, em 1961. A peça parece haver influenciado dramaturgos como Bráulio Pedroso, que teve As hienas apresentada no Rio de Janeiro em 1971: era uma alegoria da ditadura militar. Imagem das forças que trituram as pessoas em todas as épocas, o teatro de Ionesco não exclui as referências políticas, apenas evita limitar-se a elas: “A condição essencial do homem não é sua condição de cidadão, mas de mortal”. Algo mais?
(Artigo no centenário do dramaturgo romeno, naturalizado francês, Eugène Ionesco (1909-1994).  Publicado no suplemento Pensar, do Correio Braziliense, em 14-11-2009.
Fernando Marques é jornalista e doutor em literatura brasileira pela UnB. Publicou Retratos de mulher (poesia), Zé e o livro-disco Últimos (peças teatrais). www.fernandomarques.art.br.) 
 Estante
De Ionesco:
A cantora careca – Tradução de Maria Lúcia Pereira. Papirus, 1993.
A lição e As cadeiras – Tradução de Paulo Neves. Peixoto Neto, 2004.
O rinoceronte – Tradução de Luís de Lima. Abril Cultural, 1976.
Rhinocéros – Gallimard, 2008. 
Sobre Ionesco:
O teatro do absurdo – De Martin Esslin. Tradução de Barbara Heliodora. Zahar, 1968.
The theatre of the absurd – De Martin Esslin. 3ª. edição. Vintage Books, 2001.
O texto no teatro – De Sábato Magaldi. Com os artigos “O mundo de Ionesco” e “Ionesco e a morte”. Perspectiva, 1989.
Teatro em progresso: crítica teatral (1955-1964) – De Décio de Almeida Prado. Com o artigo “Espetáculo Ionesco”. Perspectiva, 2002.   

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