sábado, 19 de dezembro de 2009

TRECHO DE UMA PEÇA DE IONESCO.



O QUADRO
                  Guignolade

      A Paul Chevalier

 Eugène Ionesco

Tradução: Geraldo Lima

PERSONAGENS

        O RICO SENHOR
        O PINTOR
        ALICE
        A VIZINHA

O Quadro, numa encenação de Robert Póstec  — que havia montado admiravelmente  Jacques ou La Soumission —  foi criado, em Paris, em outubro de 1955, no Théâtre de la Huchette., na interpretação dessa peça, um erro a ser evitado. Os atores não devem adotar para a primeira parte da peça uma interpretação realista, ou naturalista, nem pensar que se trata de uma crítica do capitalista explorando o pobre artista. A interpretação realista não pode ser evidentemente adequada na segunda parte da peça cujo tema é a “metamorfose”, — tratada parodicamente a fim de encobrir o sério.
Na realidade, esta guignolade¹ deve ser interpretada por “ Augusto”² de circo, da maneira mais pueril, a mais exagerada,  a mais “idiota” possível. Não é preciso dar aos personagens um “conteúdo psicológico”: quanto ao “conteúdo social” (!), ele é acidental, secundário. Os atores ( especialmente O Senhor Rico ) não devem ter medo de fazer caretas horríveis, dar cambalhotas, de passar sem transição de um estado a outro. As inversões de situação devem acontecer bruscamente, violentamente, grosseiramente, sem preparação.                                    
        Não é senão por uma simplificação extrema, grosseira, pueril, que a significação dessa farsa pode se libertar e tornar-se verossímil à força da inverossimilhança e da idiotice. A idiotice pode constituir uma espécie de simplificação relevante.
        Essa guignolade foi publicada, pela primeira vez, nos “Cahiers du Collège de Pataphysique”.
  
CENÁRIO
Grande sala tendo, como móveis, uma só mesa, muito grande. Telefone. Uma poltrona de couro enorme; nesta poltrona encontra-se sentado o Rico Senhor.
Porta à direita, porta à esquerda, janela à direita no canto.
O Rico Senhor, ar de satisfação, está em mangas de camisa, uma rosa presa com alfinete no peito; gravata com cores berrantes;  a camisa pode estar com as mangas  arregaçadas; relógio de pulso enorme, em ouro, no pulso; ele limpa os dentes com um enorme palito de ouro, enquanto fala; as orelhas, com um  cotonete que ele tem sobre a mesa.   Seu casaco encontra-se sobre a poltrona; uma outra rosa no lado do avesso do casaco.
O pintor está pobremente vestido,  mal barbeado, tem quase a aparência de um vagabundo. Ele porta  uma gravata larga com laço, sua tela enrolada debaixo do braço.
Alice, muito velha,  avental sujo, sapatos vulgares ou tamancos ou pantufas sujas; cabelos brancos, despenteados sob a touca; óculos, um bastão branco na mão, desajeitada;  ela funga  constantemente; se assoa com ou nos dedos.
O pintor é excessivamente tímido, tem um ar de pateta.
Isso pode ser representado no estilo dos Marx Brothers.

        Ao  erguer-se a cortina, o Rico Senhor encontra-se sentado em seu escritório. Ele olha sempre seu relógio de pulso, brinca com sua gravata de cores variadas; limpa os dentes, as orelhas, as narinas, com os instrumentos apropriados: lápis, canivete, corta-papel, dedos.
        Em frente, em pé, respeitosamente afastado, perto da porta da direita, o pintor. Este também tem vontade de limpar os dentes: ele tenta, sem sucesso, quando o Rico Senhor vira, acidentalmente, a cabeça. 

O RICO SENHOR: Aproxime-se, aproxime-se... (O pintor não se mexe.) Veja, o começo é que foi demorado. Ah, sim, não foi fácil. Eu tive de superar obstáculos invencíveis que eu venci! Mas eu não cheguei de uma vez só ao fim das minhas dificuldades; não há milagre, creia-me, senhor, você deve me compreender.
        O PINTOR: Oh sim, senhor, eu o compreendo.
        O RICO SENHOR: Eu sou um buldogue, eu sou obstinado, eu não relaxei. (Ele mostra os dentes, faz: “ham”! ham!”; os mantém cerrados, lábios esticados, e rosna forte como um cão.)  O essencial, veja o senhor, é aguentar.
        O PINTOR: Aguentar, sim senhor.
        O RICO SENHOR: Pois nada lhe cai prontinho do céu, como o maná do deserto. (Mostrando com um gesto da mão tudo em torno de si, a parede, a mesa.) Mas veja o resultado das minhas dificuldades, é meu. O que o senhor diz disso? Hein? Diz o que você acha disso.
        O PINTOR: Seguramente, sim, seguramente...
        O RICO SENHOR, enxugando a testa com um grande lenço: O fruto das minhas dificuldades, o suor do meu rosto. Eu me orgulho disso.
        O PINTOR: Oh... O senhor merece realmente isso.
        O RICO SENHOR: Aproxime-se, aproxime-se. (O pintor aproxima-se a passos curtos.) Sim, senhor, eu realmente mereço isso. Eu posso sem vaidade me citar como modelo. Que isso sirva aos outros, e a você. Eu não sou um egoísta, contrariamente à maioria das pessoas  que venceram, meu caro, como eu, com a força de vontade, com obstinação, com energia, com  trabalho. Eu venho lhe dizer, meu caro, que não há milagres. Mas veja bem, meu caro, há o  milagre.
        O PINTOR: Ah, o milagre?
        O RICO SENHOR: Sim, você me compreende muito bem. Um só milagre, o verdadeiro milagre por excelência: o trabalho.
        O PINTOR, ingênuo: Ah, sim, o senhor tem razão; o milagre do trabalho.
        O RICO SENHOR: Veja, você mesmo o diz. Eu sei que tenho razão. (Mostrando novamente as paredes, a mesa.) A prova: a concretização dos meus esforços, esta casa.
        O PINTOR: Não posso negá-lo. ( Ele coloca a tela debaixo do outro braço.)
        O RICO SENHOR: Eu sou fruto das minhas obras. A vida foi para mim um longo combate. A vida é uma luta impiedosa. Nós marchamos sobre cadáveres! Eu não sei se você está de acordo comigo.
        O PINTOR: Oh sim, senhor!
        O RICO SENHOR: Uma luta impiedosa, mas... honesta: a livre concorrência.
        O PINTOR: A livre concorrência, senhor.
        O RICO SENHOR: Finalmente nós encontramos uma espécie de satisfação, um prazer amargo e profundo, a alegria do dever cumprido... À noite, nós podemos dormir, pois temos a consciência tranquila. (Ele fecha os olhos durante um segundo, apoia a cabeça numa das mãos, imitando um travesseiro, finge ressonar.)
        O PINTOR: Tranquilo, sim, senhor. (Ele tenta limpar um dente com o dedo, mas não pode, pois:) ³
        O RICO SENHOR, reabrindo os olhos: Sim, tranquilo, mas como?  Que tranquilidade!  É a tranquilidade da calma após a tempestade!
        O PINTOR: Ah, sim, após... após a tempestade.
        O RICO SENHOR: Aproxime-se, aproxime-se. (O pintor se move com dificuldade; quase choramingando, compadecido de si mesmo.) Eu levei uma vida muito dura, desde minha tenra infância. Meu pai... enfim, não falemos disso, talvez não seja realmente sua culpa, ele está morto. Meus avós também. Minha mãe, ela, ela se casou com um bêbado. Meu pai também bebia muito, mas era o meu pai. Enquanto o outro, como lhe explicar, não era senão o meu pai adotivo,  tão-somente!   Enfim, minha mãe está morta também. (Se enternecendo.) O senhor não pode imaginar o que é isso para um menino jogado na vida, na selva...
        O PINTOR, se enternecendo também, até as lágrimas: Sim, senhor, eu imagino.
        O RICO SENHOR, dando um soco na mesa: Não, meu querido, não, você não pode imaginar. Mas eu me levantei!...
        O PINTOR, timidamente: Eu passei por isso também... Minha mãe...
        O RICO SENHOR: Claro que não, claro que não, meu querido, não é a mesma coisa. Nós somos totalmente diferentes uns dos outros!
        O PINTOR: Ah! Isto, sim!
        O RICO SENHOR: Você vê essa janela que dá para a rua. (Ele faz sinal para o pintor dirigir-se  para  ela.) Vai até lá, vai até lá.
        O PINTOR, sempre com a tela enrolada, vai até a janela: Aqui?
        O RICO SENHOR: O que você vê?
        O PINTOR: Uns passantes.
        O RICO SENHOR: O que eles fazem?
        O PINTOR: Eles passam.
        O RICO SENHOR: Isso é bem vago. Observe-os melhor: nenhum se parece com o outro.
        O PINTOR: Efetivamente.
        O RICO SENHOR: Eu sei, não é a primeira vez que eu os observo; eu os observo sempre quando não vejo ninguém, nas minhas horas de premeditação.
        O PINTOR, retornando calmamente ao lugar onde estava antes, sempre com a tela debaixo do braço: Sim, senhor. ( O Rico Senhor limpa as orelhas; o pintor quer limpar um dente, mas desiste, pois:)
        O RICO SENHOR: Eu os vejo do interior... Mas ponha então o seu quadro! e no entanto eles são todos parecidos; ali está todo o mistério da vida... (O pintor mete de novo o quadro debaixo do outro braço, não sabendo onde pô-lo.) Não mude assim o tempo todo o seu quadro de braço, como alguém que  muda o fuzil de ombro.
        O PINTOR: Eu peço desculpas, senhor...
        O RICO SENHOR: Mudar seu quadro de braço como alguém que muda seu fuzil de ombro! Era também uma palavra engraçada! Ha! Ha! Você percebeu isso?
        O PINTOR: Oh, sim! Ha! Ha!
        O RICO SENHOR: Sente-se, meu querido!
        O PINTOR, de novo procurando em vão um assento com os olhos: Sim, senhor.
        O RICO SENHOR: Veja, meu querido amigo, eu tenho vinte anos de Bolsa. Eu joguei, eu ganhei. (Apontando.) Eu tenho telefone. Você ouve? Ele funciona. (Campainha de telefone.) Eu não sei se você está convencido.
        O PINTOR: Sim, senhor.
        O RICO SENHOR: Olha, ainda! (Ele mostra de novo o telefone. Este soa, para.) Mas eu não pretendo convencê-lo  absolutamente. É preciso que isso venha de você mesmo. O que eu dizia? Ah, A Bolsa, isso te torna um homem. A Bolsa é a vida... É preciso escolher.
        O PINTOR: Sim, senhor.
        O RICO SENHOR, soluçando: Eu dormi sobre a palha, meu amigo, no hospital, não importa onde, eu me instruí por meus próprios meios, eu não tive uma verdadeira juventude.        
        (....)
               
1.   Guignolade: situação digna de Guignol, ou seja, de teatro de fantoche.
2.   Auguste (augusto): palhaço de circo.
3.   N.T.: Embora dê a impressão de estar incompleto, é assim que se encontra no original.

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