sábado, 6 de março de 2010

UM CONTO ETÍLICO DE JOSÉ EDSON DOS SANTOS.



     Morena louca para pular a cerca
                            
                                            José Edson dos Santos

      Quase uma da madrugada. O Café da Rua 8 vazio evidencia o desnaturado frio de julho e o recolhimento sensato dos notívagos mais experientes. Reabasteço a taça de vinho Miolo Merlot para ensandecer a alma de bardo desiludido com o último soneto escrito à iguana potiguar que tive como amante na folia do bloco carnavalesco Pacotão. O fígado andava meio detonado que nenhum Epocler ou chá de boldo funcionaria como atenuante sobre o desregramento do corpo etílico. Envolto na divagação, na prosopopeia e no mito de um pássaro pirado chamado de bacurau, não percebo uma morena faceira vestindo roupa de inverno que surge da outra extremidade em penumbra do Café, se prontificando com meiguice e sedução:
– Posso sentar um pouco?
– O vinho está no fim e o Café já está fechando também.
– Que pena! Logo hoje que estou louquinha para pular a cerca...
– Muito interessante, digo sem muita convicção.
– Vamos fazer que ele sinta o prazer de levar um chifre de corno, ela insiste com provocação e acendendo um cigarro mentolado.
– Por favor, puladora de cerca, não estou querendo complicação à uma da madruga...
– Esse puto merece amanhecer com um par de chifres na testa!
– Sem querer parecer antipático, puladora de cerca, não estou entendendo patavina de sua prosa. Quem você está pretendendo cornear?
– É o canalha do Merivaldo que se diz meu marido há sete anos, mas vive me enganando todo esse tempo. Ele pensa que eu não sei que ele tem outra lá no Núcleo Bandeirante. Mulher casada quando enganada pula também a cerca...
– O que é que esse tal de Merivaldo faz na vida?
– Ele tem uma empresa que faz turismo na Chapada dos Veadeiros e viajou hoje de manhã cedinho, me deixando na maior dureza sem nenhum tostão...
– Merivaldo fica chapado e vira veado deixando sua raposa morena pulando a cerca, procurando uva passa e um varão vinhateiro. Taí uma situação impulsiva que pode render um samba canção, uma balada de duplo sentido, um bolero indolente e libidinoso...
– Se você quiser ser o felizardo, meu querido compositor vinhateiro, moro em uma quitinete do outro bloco e vou te cobrar apenas cinquenta reais na camaradagem. Preciso pagar a minha manicure. Se eu não pagar a Edwirges amanhã, ela vai ficar puta da vida comigo...
      Entorno o resto do vinho Miolo Merlot, safra 2001. Chamo Betúnia, a garçonete sonolenta de tetas túmidas do Café para acertar a conta. Os noturnos de Chopin tomam de assalto a cabeça quando tento esquecer a cobrinha, a lontra, a gralha e todo zoológico sentimental e inconsútil que habitam a floresta de minhas paixões mal resolvidas. Que fígado porra nenhuma! A morena meiga que quer pular a cerca e mora no bloco D da quitinete vizinha talvez entenda o lado soturno que atormenta a madrugada do bardo que jurou nunca mais escrever um soneto em branco e preto sobre a iguana potiguar do seu encontro carnavalesco no bloco Pacotão. O torpor do vinho invadindo o corpo em delírio é foda! Pular a cerca por cinquenta reais com uma raposa morena é muito pouco, seu Merivaldo veado. A Edwirges que faça manicure em outra freguesia e que vire puta em outra ocasião. Semana que vem começo a adaptação  de outro noturno em Brasília,  trabalho que o videomaker Salatiel Gontijo chama de um voo altiplano no infininho do ser. Candango depois do tango de desterro amazônico embebeda a sogra com vinho Sangue de Boi e amoníaco, mas aí a conversa toma outro rumo. “A virtude é a mãe do vício, conforme se sabe” e o vinho é de outra safra, morena raposa sabor de veneno. Vou pular a cerca contigo com certeza. O Merivaldo que se foda na Chapada!


“A virtude é a mãe do vício, conforme se sabe”. Torquato Neto em Literato Cantabile. Os Últimos Dias de Paupéria. Editora Eldorado. Rio de Janeiro, 1974.

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE JOSÉ EDSON DOS SANTOS E SUA OBRA.

O cultivo de uma postura maldita juntamente com o sestroso elogio à noite e seus personagens à margem das normas, imersos na singular atmosfera urbana brasiliense. Sem dúvida, Zé Edson esmera-se em explorar estes temas e este clima.”    Francisco Kaq, Jornal de Brasília.

“Apesar de seu desterramento, o poeta José Edson dos Santos revela a veia telúrica e amazônica, mas em formatos urbanizados de criação. Linguagem célere, quase minimalista, entre o irônico e grotesco, de sua verve dramática e de black humour como em “Poética magra”: “No contracheque/ o sarcasmo do salário/ como mal-me-pague da educação popular/ / O que pode almejar o poeta/ professor ator/mentado do sonho/ pretextando outras manhãs/ com palavras por dizer/ ser um impróprio trocadilho?”   Antonio Miranda

(Nasceu em Macapá/AP e mora em Brasília desde 1974. É Arte-Educador no CEAN/ASA NORTE. Publicou em 1972, em Macapá, Xarda Misturada com José Montoril e Ray Cunha. Em 1978 participou da antologia organizada por Salomão Sousa, Em Canto Cerrado. Em 1980, publicou Latitude Zero, em edição mimeografada por Paulo Tovar; Águagonia, edição coletiva com Alvisto Skeef, Antonio Flávio Testa, Chico Terra e Kleber Lima. Bolero em Noite Cinza foi publicado pela Da Anta Casa Editora em 1995Ampulheta de Aedo, pela LGE Editora, em 2005. Participou das antologias: 27 Porretas; Beirute: Final de Século; Poemas e Contos/SEDF; Todas as Gerações – o conto brasiliense contemporâneo; Deste Planalto Central – Poetas de Brasília, entre outros. Blog: http://joyedson-artevie.blogspot.com)

2 comentários:

  1. Põe etílico nisso! :) Dá para se sentir bêbado sem uma gota de álcool!
    Abração, Geraldo, obrigado por compartilhar mais esta obra!

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  2. É isso mesmo, Alexandre, põe etílico nisso. O Zé Edson sabe muito bem como falar desse universo boêmio. Gosto muito do texto dele.
    Um abração.

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