segunda-feira, 3 de maio de 2010


Constelação de mordidas  - algumas análises sobre o romance  UM, de Geraldo Lima

Por Paulo Kauim

          Em Os números ( A História de uma grande invenção ), o matemático Georges Ifrah afirma:“ É verdade que um e dois são os primeiros conceitos numéricos inteligíveis pelo ser humano. O Um é, com efeito, o homem ativo, associado à obra da criação. É ele próprio no seio de um grupo social e sua própria solidão face à vida e à morte. É também o símbolo do homem em pé, o único ser vivo dotado desta capacidade, como também do falo ereto que distingue o homem da mulher”.
          UM, primeiro romance de Geraldo Lima, é uma obra fabricada com linguagem rigorosa e com sofisticado apuro narrativo. Significado e significante estão em constantes hibridagens narrativas-poéticas-fios-de-ariadne de nossos tempos.
          UM coloca em xeque nossa pós-modernidade banguela-cristã. Uma leitura psicanalítica desta obra  nos permite analisar momentos onde o autor descreve sobre os resquícios de um canibalismo ainda tardio em nós ou podemos lembrar, aqui, quando o Deleuze afirma que a grande obra nos lança ao pântano mais remoto do início da criação do mundo. Em outro momento, o autor diz: Meu ser é outro agora. Fazendo com que o leitor (eu e você)  reflita sobre nossas subjetividades.
          Além de todo cuidado com a linguagem, atravessamos o romance em meio a um humor tênue e uma metralhadora de críticas sobre a política, os políticos, a pele superficial de nossos dias, os spams, com anúncios sobre aumento de pênis, lotando nossas caixas de e-mails  etc.
          A voz de Paulo dentro da trama também é nossa, mesmo quando ele decide se matar. Aqui as personagens falam entre si e com o leitor, nos lembrando o querido Machado de Assis, quando de forma metalinguística nos atira dentro de suas páginas e rizomas.
          É sublime como o autor fala de si sem ser o Geraldo. Erige um outro. Toda a linguagem do romance é arrojada, sofisticada, sem ser pedante e afirmando um desejo de ser lida e devorada ao jogar sobre o leitor claridade e refinamento de engenho. UM é uma obra que desce até o subsolo do leitor ao afirmar: “ tem que se reservar um espaço, ainda que mínimo, para os tormentos da dor, pois só assim o ser se lapida por inteiro". Dialogando com a ciência e com a psicanálise, o autor nos relembra: “ ora, tudo é compreensível, explicável".
          Neste texto, não escreverei sobre o que acontece no romance, o leitor que se encarregue de traçar a sua via. Aqui, desejo apontar esta constelação de mordidas que senti ao ser devorado pela obra. Se as vanguardas tornaram-se sisudas, nesta obra o leitor encontrará momentos onde a personagem principal fica admirada ao encontrar um ser capaz de rir do que não tem graça alguma e ainda rir do próprio personagem principal. É ela. É Ana.
          Poesia e psicanálise atravessam as páginas em UM. A personagem principal abandona o seminário. Com a psiquê atormentada, Paulo segue de página em página: "alma mansa e desinteressada, incapaz de julgar e condenar. Desorientada, sem forças para mover-se. Alma que sabia dos seus
rasos e dos seus abismos. Fugindo da verdade”. Vestígios de neuroses são encontrados aqui: “tenho tantas dúvidas, Ariadne, nunca sei se as coisas são o que aparentam ser".
          Recortei esta fala da personagem Paulo: “o mundo não precisa de mais religiões, de igrejas... Religiões apenas separam, cegam”. Em Leonardo da Vinci - Uma pequena lembrança de sua infância, Freud nos fala sobre a dificuldade que a maioria das pessoas sente em se desprender da religiosidade, apontando como causa uma dificuldade latente que estas mesmas pessoas sentem em se afastar do pai, serem donas de suas próprias existências, já que a religiosidade, em geral, oprime e atormenta.
          O uso da repetição de palavras usadas pela personagem Paulo desvenda vestígios de uma loucura real, embora o uso da repetição de palavras seja um recurso dos artistas inventivos contemporâneos.
          Recortei este fragmento: “As horas escoam para o nada". Aponta um existir zero. Há momentos no livro onde o tempo se espicha numa eterna agonia, construída de propósito pelo autor. No nosso dia-a-dia, quando estamos sendo arrastados pela correnteza dos afazeres diários, devemos parar, respirar, na luta para apreendermos e aprendermos  através do discernimento, e é exatamente aqui onde Paulo, esta alma-câmera-glauberiana, segue a fala fio de Ariadne.
          Há momentos em que, enquanto uma personagem encontra-se sorrindo, a outra encontra-se no inferno: “todo sofrimento está na nossa mente inquieta". Nada é rarefeito neste romance. A dor, o desespero, a angústia, o ciúme, a libido são tratados com a profundidade de um poema e sempre usando linguagem estruturada em alta voltagem: “via-me agora esmagado, reduzido a nada".
          Até no ato assassino Paulo não se separa de Deus. Porém Geraldo Lima nos leva para a ciência, para os novos exoplanetas. Em crise, a personagem Paulo propõe novos modos de ser no mundo. A solidão invade o livro. São explícitas as contradições de um "cara”que gosta de ler e ao mesmo tempo sente dificuldades em se relacionar com a vida e os humanos.
          Esta obra relata novas estatísticas que apontam o crescimento do rebanho de evangélicos a cada dia em território predominantemente católico.
          UM incorpora ao projeto de narrativas pós-modernas falas diretas para/com o leitor. Aqui o artífice em seu ofício de romancista-poeta, em duas linhas, em uma concisão epifânica, resolve um conflito que poderia levar várias páginas e parágrafos.
          A psicanálise trabalha com associações livres. Em UM, a personagem Paulo faz sobreposições na mente ao pensar em Ana, em Ariadne e, logo em seguida, pensa na mãe, desejando que sua mãe  pense nele também naquele instante. As mulheres retornam numa sobreposição de colagem até a mãe.
          Por um buraco ( UM ), o falo ereto vai passando. Leve. Voa. O desejo de voar para Freud, em Leonardo da Vinci – Uma pequena lembrança de sua infância, representa o desejo de ereção.
          No Brasil, o espetáculo do crescimento continua no território da linguagem.
          Axé, Geraldo Lima
         Axé

        Paulo Kauim  é professor e  poeta, autor de  demorô, Thesaurus Editora, 2008.
       Tem pós-graduação em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas pela UNB.

Nenhum comentário:

Postar um comentário