quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Casal


 Por Geraldo Lima

– Estou pronto para morrer, ele disse com uma voz que já trazia em si a ruína e o silêncio.

Ela abriu a veneziana, como se cavasse uma fuga, e um vento frio a fez encolher um pouco mais para dentro do roupão. Um casal de pássaros, num voo-relâmpago, passou rente à janela. Parecia se pegar em pleno voo, ora quase tocando o chão, ora erguendo-se rumo às nuvens. Talvez os dois estivessem se acasalando, e aquela violência toda fosse só o modo de explicitar o desejo.

Durou poucos segundos esse balé desvairado, o suficiente, no entanto, para arrebatá-la. O suficiente para arrancá-la dali, daquele ambiente de falência múltipla. Assim que os pássaros sumiram mais adiante, em meio à copa dos abacateiros, ela foi sugada de novo para dentro dessa realidade prestes a se decompor.  

– Estou pronto para morrer, ele repetiu, como se estivesse enfiando um prego na mente dela.

Ela fechou a veneziana e foi até o quarto. Abriu a gaveta da cômoda e do meio das roupas tirou um objeto que lhe provocou calafrios. Deu vontade de sentir de novo o vento frio na cara antes que tudo ruísse diante dos seus olhos.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Samba


Por Aimé Césaire

Tudo o que  da enseada se aglutinou para formar teus seios todos os sinos de hibiscos todas as ostras perlíferas todas as pistas embaralhadas que formam um mangue tudo o que há de sol armazenado nos lagartos da serra todo o iodo necessário para fazer um dia marítimo toda  madrepérola necessária para desenhar um ruído de búzio subaquático
Se tu quisesses
        os baiacus à deriva iriam se dando as mãos
Se tu quisesses
ao longo de todo o dia as forônidas  fariam estradas com seus tentáculos e  os bispos seriam tão raros que a gente nem ficaria surpreso de saber que eles foram engolidos pelos bastões dos trichomanes
Se tu quisesses
       a força física
       asseguraria sozinha a noite com uma marcação de araras
Se tu quisesses
nos subúrbios que eram pobres as rodas d’águas retornariam aos copos o perfume dos mais novos ruídos nos quais se embriaga a terra nas suas dobras infernais
Se tu quisesses
       as feras beberiam das fontes
       e em nossas cabeças
       as pátrias de terras violentas
       estenderiam como um dedo aos pássaros a aparência
       sem tremor dos altos pinheiros.

    (Tradução: Geraldo Lima)