terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Odisseu


Por Geraldo Lima

Estou prestes a adentrar uma região vasta, assustadoramente vasta. Mundo ermo, movediço, imprevisível. A partir daquele ponto ali, onde a luz cega e alucina, meu ser vagará à deriva, entregue aos caprichos da sedução.

Posso, nesse caso, fechar os olhos e tapar os ouvidos, blindando-me contra  o fascínio da beleza e a magia da voz. Poderia, inclusive, fazer meia-volta e retornar daqui, onde sinto ainda a terra, firme e segura, sob meus pés. Poderia. Mas uma força extrema me arrasta para fora de mim. Ah, um deus furioso deve ter me atirado nessa aventura insana, pois nunca alimentei em mim tanto desvario.

Ouço o canto da sereia e avanço despido de razão e prudência.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Sobre algumas cenas de filmes


   Por Geraldo Lima

 
A cena inicial do filme ‘Ladrões de bicicleta’, de Vittorio de Sica (1948), revela muito da alma do protagonista Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani). A história se passa na Itália do pós-guerra, e, obviamente, achar um emprego num cenário desses não é fácil. Antonio e mais uma centena de homens estão à espera de serem chamados para uma vaga de emprego. Todos estão ali, atentos, aflitos, menos o nosso protagonista: ele se afasta e, ao ser chamado pelo funcionário da agência de empregos, não escuta. É preciso que um amigo corra até ele e o avise. E é por esse ar desatendo, num mundo marcado pela necessidade e pelo desespero, que ele se verá metido em dificuldades. É o típico personagem que nos faz balançar ora a seu favor, ora contra suas ações desastradas. Sentimos pena e raiva ao mesmo tempo. Antonio representa bem o tipo de pessoa talhada para ser perdedora numa sociedade que exige do indivíduo atenção e praticidade constantes. Não é permitido vacilar num cenário tão desfavorável à vida. ‘Ladrões de bicicleta’ nos conta uma história comovente numa Roma destroçada pela guerra.  Em suma, essa obra-prima do Neorrealismo nos leva a mergulhar fundo no desespero humano.  



No filme 'Pulp Fiction - Tempo de Violência', de Quentin Tarantino, há uma cena que me arrebatou e à qual já assisti uma dezena de vezes. Trata-se da cena em que a personagem Mia Wallace (Uma Thurman) prepara-se para sair com Vincent Vegas (John Travolta). Ao som de 'Son of a Preacher Man', na voz de Dusty Springfield, ela se levanta e começa a caminhar. A câmera, em close, acompanha seus pés que parecem flutuar. Isso é de uma beleza ímpar. Simples e belo. Um poema em forma de imagem em movimento. A junção perfeita entre imagem, som e movimento. O filme é uma obra-prima, e há outras tantas cenas maravilhosas nele. Essa me encantou pela leveza e pelo que ela prenuncia.



A certa altura do filme 'Império dos sentidos', do diretor japonês Nagisa Oshima, o amante introduz, suavemente, um ovo na vagina da amante. Em seguida, ela fica de cócoras e bota o ovo. Entrega-o ao amante que o come sorrindo. Essa cena é de uma beleza estranha e extrema, para além, muito além do gosto ocidental. Nagisa faleceu recentemente e a sétima arte perdeu um dos seus grandes mestres. Em suma, a Arte perdeu um dos seus grandes transgressores.



Em 1980, ano em que foi lançado o filme ‘A Idade da Terra’, de Glauber Rocha, minha mente estava tomada por ideias revolucionárias. Ia atrás de qualquer estética que fugisse ao convencional. Assim, acompanhava pelos jornais a trajetória do novo filme do cineasta baiano e me deixava embriagar pela polêmica que a obra estava provocando. Diziam que poucos espectadores permaneciam até o final de cada sessão. Assisti ao filme no Cine Brasília. Era verdade o que os jornais diziam: várias pessoas não resistiram nem a trinta minutos de exibição e abandonaram a sala de cinema. Eu resisti. Mais que isso: saí de lá tomado pela estética delirante e dionisíaca desse que seria o último filme de Glauber Rocha. Uma cena, em especial, ocuparia (e ainda ocupa) a minha mente de forma quase obsessiva. Trata-se da cena em que o personagem de Tarcísio Meira, à beira-mar, repete, à exaustão, a seguinte fala (que sofre, na sequência, algumas variações):”Nós estamos condenados. Houve uma implosão no centro da Terra. Os nossos alicerces foram destruídos. A qualquer momento poderemos ser tragados pelo abismo”. Ele dizia isso e depois beijava a personagem da Ana Maria Magalhães. Mas a fala que mais repercutiu em minha mente foi esta: “Esta é a cloaca do universo!”. Ele dizia isso apontando para o lixo que as ondas arremessavam contra as pedras. A câmera girava e girava loucamente. E eu saí do cinema com a cabeça a mil, entrei no ônibus e ali mesmo escrevi um texto que tinha a pretensão de explicar toda aquela loucura genial do diretor de ‘Deus e o diabo na terra do sol’.