terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A realidade implacável


Por Geraldo Lima


Então você pensa, vou passar pelo menos um mês sem me deixar abater pela realidade brutal e cinza em que vivemos. Você pensa e age da única maneira que lhe parece possível – alienando-se. E para se alienar assim (um estágio de desintoxicação do veneno que nos entra mente adentro todos os dias, você justifica), deixa de ler os jornais impressos e on-line, de assistir ao noticiário televisivo e de ouvir os programas jornalísticos das rádios. A violência cessa momentaneamente. A fome desaparece da face da Terra num segundo. A corrupção (à esquerda, ao centro e à direita) não deixa rastro nem catinga. Todos os protestos, seja de que natureza for, calam-se. Não se ouvem mais as asneiras ditas por âncoras e comentaristas nos telejornais. A realidade, como num passe de mágica, suaviza-se como se nunca houvesse sido deformada pela rugosidade da alma humana.

A sensação de paz e saúde mental parece que vai durar para sempre. E você deseja de fato, do mais fundo do ser, que ela dure para sempre. Mas tudo (você logo descobre) é ilusão. Ninguém pode estar protegido, em sua redoma de vidro ou aço, contra os desencantos da realidade.

E essa tão desejada imunidade à realidade brutal dura até o momento em que você vê o BOPE agredindo e prendendo professores no Eixão Sul, em Brasília, durante um protesto da categoria em greve. A imagem é tão chocante que você sucumbe à força do pessimismo: depois dessa violência contra os educadores, todas as esperanças de que o país sairá da lama do atraso através da Educação estão mortas. Chegamos ao fundo do poço, você conclui, e procura voltar correndo para sua redoma. Mas antes que você chegue, outra tragédia barra a sua passagem – a lama que invade os arredores de Mariana, destruindo casas, meio ambiente e vidas humanas.

O rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco leva destruição e pânico ao distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais, é o que dizem as manchetes dos jornais, e por mais que você se esquive, as palavras sujas de lama e morte batem direto na sua cara e na sua consciência. Diante das imagens de destruição e desespero, seu coração se comprime de dor e impotência ao mesmo tempo. Como se isso não bastasse, constatam, dias depois, que o Rio Doce está oficialmente morto. Com esse nome, que nos acaricia a alma e o paladar, o destino que a ambição dos homens lhe reservou nos soa ainda mais amargo. A notícia de que mais um rio está morto, neste cenário de crescente escassez de água que aflige o planeta, é de nos deixar apavorados.

Então você se indaga, Ainda posso usufruir da tranquilidade da minha redoma de silêncio e paz? E como acha que sim, vai à sua procura o mais rápido possível. Só que a realidade brutal e tosca intercepta, mais uma vez, os seus passos. Você não pode mesmo fechar os olhos nem tapar os ouvidos aos tiros e explosões detonados na capital francesa. O espetáculo é de horror e tragédia. Outra vez, dez meses após o atentado ao jornal Charlie Hebdo, militantes do Estado Islâmico aterrorizam a Cidade Luz, mergulhando-a nas trevas do terror.  Paris é, nesse momento, apenas dor e medo. E aí você percebe que está longe, muito, muito longe da sua ilusória redoma de alienação e saúde mental.  A realidade, banhada em lama tóxica e sangue de inocentes, não lhe dá trégua nem chance de se manter alheio à sua dinâmica pesada e sinistra.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Sobre a poesia de Muna Ahmad


Por Geraldo Lima

Muna Ahmad escreve há bastante tempo, mas ainda não teve a oportunidade de apresentar sua poesia a um número maior de leitores. Agora, com este livro de estreia, em que ela reúne sua produção de longa data, podemos, enfim, ter acesso à sua sensibilidade poética e ao seu domínio técnico da arte da palavra.

Nos cinquenta poemas que compõem o livro, na sua maioria curtos, – alguns são haicais e outros com  influência  da Geração Mimeógrafo ou Poesia Marginal da década de 70 ­– podemos nos deparar com registros líricos de cenas do cotidiano (“de manhã cabelos deixados na pia/bordam o branco de nossa convivência”), fragmentos de memória (“Ataliba Nina e Mimi,/subir e descer nas pernas do ‘m’/ mão vacilante/afundando o grafite/ no terror da página em branco”), referências ao Oriente Médio (“céu aberto/cáfila silenciosa/cruza o deserto”) até a simples descrição enumerativa de uma paisagem (“parafuso margarida pneu/abandono magnético/folhas na relva”). Embora marcados, essencialmente, pela emoção, pelo lirismo, nada aí chega ao transbordamento romântico. O uso da justaposição ou parataxe na composição de boa parte dos poemas inibe, de certo modo, o tom discursivo ou retórico e exige que o leitor participe da montagem final do texto em busca de um significado. Esse leitor, num poema como “jardim”, por exemplo, será ainda surpreendido por um instantâneo de haicai, de clique de máquina fotográfica, de pincelada impressionista.     

Ao escolher uma palavra de origem árabe para dar título ao seu livro, Muna pode nos dar a entender que o território afetivo em que sua poesia transita ou habita se circunscreve apenas ao mundo islâmico, mas, ao lermos seus poemas, essa impressão logo se desfaz. Sua ascendência árabe tem presença forte neles, mas a cultura brasileira e a nossa paisagem também se destacam ao longo do livro. Filha de pai palestino e mãe brasileira, suas raízes afetivas e culturais estão, de fato, fincadas em dois mundos.


Seus poemas, assim como o título do livro sugere (Muxarabi significa “muro de concreto em forma de arabesco que filtra a luz”), filtram a emoção e a percepção da realidade de modo que a força do seu lirismo inunde a alma do leitor com delicadeza e intensidade ao mesmo tempo. É poesia que, após sua leitura, reverbera em nossa mente.  É poesia que, na sua aparente simplicidade, dialoga com a tradição e conecta-se, pela intertextualidade, com outros textos, como em Penélope: “teceu os dias/ele não veio/queimou o cinema”. Daí o convite, mais que urgente, à leitura desses poemas de Muna Ahmad.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Uma manhã de fúria

Por Geraldo Lima

Meu compromisso no dia seguinte, logo pela manhã, era ir ao Plano Piloto, com horário marcado para chegar e tudo. Se posso evitar, marco sempre os compromissos para o período da tarde, quando o trânsito nas vias do DF costuma estar mais tranquilo. Não foi possível dessa vez, então lá ia eu enfrentar o Monstro do Engarrafamento.

Um dia antes, já fiquei pensando no aborrecimento de ter que enfrentar o engarrafamento de carros até a Ponte do Braghetto. Se não acontece nenhum acidente entre o Balão do Colorado e o Balão do Torto, o fluxo de automóveis, ônibus, motos e caminhões costuma ser até rápido; o problema é que quase sempre acontece alguma merda e o trânsito trava. Geralmente é um caminhão desgovernado que desce ladeira abaixo fazendo estragos. Outras vezes, uma moto não encontra espaço suficiente entre a fileira de carros e a tragédia está posta. Ônibus quebrados à beira da pista costumam congestionar o trânsito também. Ônibus quebrando durante o trajeto é coisa corriqueira, então já viram.

Não deu outra. No dia seguinte lá estava a tira de carros indo da entrada de Sobradinho até perder de vista. Saí do Grande Colorado para deixar minha esposa no trabalho, em Sobradinho I, e fui maquinando que a melhor estratégia seria pegar a DF-001 até o Paranoá, descer até a beira do Lago e contorná-lo até a Ponte do Braghetto. A distância é bem maior, mas só o fato de não ficar uma hora ou mais no trânsito lento, quase parando, já compensaria. Peguei a DF-440, que sobe beirando o Condomínio Império dos Nobres e fui sair na DF-001. Que beleza! Até o Paranoá, havia praticamente só eu na pista. Fiquei pensando nos que enfrentavam a lentidão do trânsito da BR-020 e concluí que havia feito a melhor escolha da minha vida. Quase sempre erro nesse tipo de escolha. Quando mudo de fila num banco ou supermercado, por exemplo, sempre escolho a fila que vai demorar mais. Parece coisa escrita nas estrelas. Ou praga, sei lá. Dessa vez estava me dando bem, e era só felicidade.

Dizem que alegria de pobre dura pouco, e creio nisso. A minha durou até pegar a EPPR, que vai contornando o Lago Paranoá, passa em frente ao Varjão e entra no Lago Norte, ali nas proximidades do Shopping Iguatemi. Minha gente, caí num engarrafamento que deixava o da Descida do Colorado na lanterninha. Mas agora não havia outra saída senão (como disse aquela ministra do Turismo) “relaxar e gozar”.

Pensar e dizer é fácil. No fundo, no fundo o que nos domina mesmo é a raiva e o estresse. Fiquei pensando nos que precisam fazer esse trajeto todos os dias e que, invariavelmente, enfrentam esse inferno. Só consigo enxergar prejuízo, tanto para o cidadão quanto para o Estado. São funcionários chegando atrasados ao local de trabalho e tendo mais gastos com a manutenção do carro. São pessoas que, a longo prazo, ficarão doentes e lotarão os hospitais públicos e os privados. É gente que chega irritada ao trabalho e isso só gera um ambiente improdutivo e tenso. São indivíduos que, a qualquer momento, podem perder as estribeiras e provocar cenas de violência absurda. Enfim, a lista de prognósticos ruins é extensa. E qual é a solução para melhorar esse trânsito caótico? Não sou especialista em trânsito, mas tenho lá a minha sugestão: METRÔ. Só ônibus não resolve. Metrô moderno e eficiente. E pronto!  

Ah, quanto tempo gastei para chegar ao local do meu compromisso, no Setor de Autarquias Sul? Uma hora e meia! Quase uma eternidade! Como havia saído mais cedo, com tempo de sobra, cheguei na hora exata. Nem mais, nem menos.

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)


domingo, 27 de setembro de 2015

Duas históricas - do real à ficção

Por Geraldo Lima

Loucura


Todo mundo já deve ter ouvido a expressão "louco de jogar pedra", ou: "Fulano é louco de jogar pedra". Eu nunca tinha visto alguém assim, que ilustrasse literalmente o sentido dessa expressão. Hoje eu vi. E é uma imagem triste e insana de se ver. Uma mulher, louca, como se pode perceber, andando na calçada e arremessando, vez ou outra, pedras nos carros. Pedras enormes, capazes de provocar estragos imensuráveis. Ela simplesmente abaixava, apanhava uma pedra e a arremessava. Às vezes, com pontaria certeira. Definitivamente, coisa mais perigosa é a loucura iconoclasta com um arsenal de pedras ao alcance das mãos.



Inimigos


Entraram na cabeça dela e bagunçaram geral. Misturaram espaço e tempo, subverteram sua linguagem, minaram os pilares da razão. Ela luta contra eles dia e noite, ruidosa, sem pudor e limites. No ermo, tenta expulsá-los com palavrões e socos no ar. Energia gasta à toa, é o que nos parece, pois são milhares e intangíveis. Assim, sozinha e desarmada, com estratégia que se repete infindável, a guerra que ela trava pode ser inócua e perdida.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Dona de si


Por Geraldo lima

Era uma mulher livre – no sentido pleno da palavra.

Ele a conheceu assim, um horizonte amplo e indefinido. Ainda que o amasse, não conhecia fronteiras nem amarras. Era uma dessas capazes de nos fazer sofrer mesmo em pleno gozo, tal a sensação de fluidez do seu espírito e o estado sempre movediço do seu corpo. Um corpo que, estando em nossos braços, já escorregava para outro plano, outros desvãos de desejos e sonhos.  

– Morri no dia em que ela me deixou – ele me revela com a voz ainda doente, cravada de pus e dor. Essa sua voz sem cura reverbera em minha pele e atravessa minha mente de ponta a ponta.

Dela, ele se recorda principalmente do cheiro de carne e de alma em brasa. Isso que, para ele, é uma incisão profunda na memória, como essas que o vento, ao longo de séculos, milênios, inscreve nas rochas.  

domingo, 19 de julho de 2015

Woyzeck em versos em terras brasileiras



Por Geraldo Lima

Georg Büchner nasceu em Goddelau, Alemanha, em 17 de outubro de 1813, e, acometido de tifo, faleceu em Zurique, Suíça, em 19 de fevereiro de 1837. Tinha apenas 23 anos de idade, mas já havia defendido tese sobre o Sistema Nervoso dos Peixes, iniciado a carreira como professor universitário na universidade de Zürich, escrito o drama de época A Morte de Danton, a comédia Leonce e Lena, o fragmento (ou esboço) do drama Woyzeck, que iria imortalizá-lo e influenciar outros dramaturgos mundo afora, e uma novela inacabada: Lenz. Além disso, deixou também o histórico de uma atividade política intensa, de crítica feroz à realidade social do seu país, tendo amargado, por isso, alguns anos de exílio.

Fernando Marques nasceu no Rio de Janeiro e, atualmente, reside em Brasília, Distrito Federal. É professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, jornalista, escritor, dramaturgo e compositor. É Doutor em Literatura Brasileira pela UnB com a tese sobre teatro musical. Tem algumas obras publicadas, dentre elas Retratos de Mulher (poesia, Varanda), Contos Canhotos (contos, LGE), A Comicidade da Desilusão: O Humor nas Tragédias Cariocas de Nelson Rodrigues (ensaio, Editora UnB/Ler Editora), o livro-CD Últimos: Comédia Musical (Perspectiva). Além disso, tem textos publicados em jornais e revistas impressas e eletrônicas.

Dito isso, resta indagar: o que une então esses dois artistas separados no tempo e no espaço?  O que justifica o fato de serem colocados, lado a lado, neste texto? Que ponto de contato há entre ambos, já que suas obras são originárias de culturas e épocas bem diferentes?

A resposta, embora simples, demanda uma explanação mais ampla, expondo afetos e meios que possibilitaram essa aproximação entre o dramaturgo alemão e o brasileiro. Fernando Marques, num lance ousado, empreendeu a árdua tarefa de adaptar em versos metrificados e rimados a peça-fragmento Woyzeck de Büchner.

A ideia de adaptar em verso (“Reiteiro, afinal, não se tratar aqui de tradução em verso”, avisa logo o autor) essa peça de Büchner surgiu em 1996 quanto Fernando participava, compondo três canções, da sua montagem em Brasília, sob a direção de Túlio Guimarães. Desse primeiro instante em que lhe brotou na mente a ideia-desejo até a sua colocação em prática, com a primeira redação do texto em 1999, passaram-se mais de dois anos.  (esse é o título da adaptação feita por Fernando Marques) passou por uma última modificação em 2013 ao ser reeditado pela É Realizações Editora. Todas as reescrituras que o texto sofreu ao longo desses anos foram feitas tendo por base obras de referência sobre a peça do jovem autor alemão, como “Büchner”, artigo de Anatol Rosenfeld publicado no livro Teatro Moderno (2. ed., São Paulo, Perspectiva, 1985), Georg Büchner e a Modenidade, livro de Irene Aron (São Paulo, Annablume, 1993), entre outras. Em busca de rigor técnico e fidelidade ao texto do autor de A Morte de Danton, Fernando consultou ainda, para a revisão feita em 2003, as três traduções integrais de Woyzeck então disponíveis. 

Vê-se, com isso, que a tarefa que Fernando Marques se impôs não foi fácil e custou-lhe anos de leituras comparativas e reelaborações na busca do texto mais próximo ao do dramaturgo alemão. Há em todo esse percurso criativo um labor e uma seriedade que resultaram num texto que traduz, de modo fiel e denso, a mesma realidade de opressão e lirismo trágico que desnorteia e esmaga o personagem Franz Woyzeck.

Essa fidelidade, no caso, não significa que o autor brasiliense tenha se esquivado de impor, em algumas passagens, a sua marca pessoal. Em alguns casos, ele procurou, por exemplo, tornar mais legíveis algumas passagens do original. Diz ele: “Do ponto de vista da legibilidade, vale dizer que visei tornar mais claras certas passagens caracteristicamente lacônicas ou obscuras do original”. Esse seu procedimento vai, no entanto, de encontro à opinião de Sábato Magaldi, segundo o qual “O hermetismo de certas passagens engrandece a peça com uma gama infindável de sugestões”. Mas essa busca de maior legibilidade não adultera em nada o texto-esboço de Büchner, pois não o despe do que Sábato Magaldi chama de “descarnamento essencial” nem lhe tira o sentido de dramaticidade.

Embora mantenha o cenário original da peça de Büchner, a Alemanha do século XIX, Fernando Marques faz algumas intervenções bem próprias na tentativa de aproximar a realidade de Woyzeck da realidade brasileira. Podemos citar, em primeiro lugar, o próprio título que o autor deu à sua adaptação. Sendo Woyzeck um zé-ninguém, um soldado raso explorado e oprimido por todos, o título dado por Fernando mostra bem, do ponto de vista da nossa cultura, esse apequenamento do protagonista diante da realidade opressora. No texto “Recomposição Versificada”, publicado em (São Paulo, É Realizações Editora, 2013), Valmir Santos afirma que “De fato, os milhões de miseráveis que contracenam pelo país, embarcados no século XXI, enxergariam facilmente um irmão no Zé büchneriano de Marques”. Ainda nesse processo de aproximação da nossa realidade, há a referência hiperbólica ao Lago Paranoá numa das falas do 1º Aprendiz: “O mundo é bonito – ou parece,/mas vou chorar um Paranoá!”. E pode-se ver ainda referência a Nelson Rodrigues num trecho como este, na fala do Judeu: “Vai ter uma morte batata,/mesmo que não seja de graça”. Ao final, Fernando faz um acréscimo ao texto original (em algumas versões a peça termina com a cena “na floresta, junto ao rio”), acrescentando-lhe uma espécie de “adendo ou epílogo”. Na fala do Velho, essa cena, cantada, reforça o caráter provisório da nossa vida terrena: “No mundo não há consistência/Todos vamos morrer/Sabemos muito bem/Vamos morrer/Sabemos bem”. Porém, enquanto o Velho canta, expondo a precariedade da vida, a Criança dança ao som da sanfona, como que apontando para o sentido de renovação e resistência dessa mesma vida.

Ainda que se possam apontar todas essas marcas pessoais do autor na adaptação do Woyzeck, ele expõe enfático os limites da sua intervenção: “Com pequenas alterações, a história é a de Büchner; minha contribuição se dá no plano dos versos e das quatro canções incorporadas à peça”.

A peça Woyzeck e as variações possíveis na sua estrutura dramática.

Na obra Georg Büchner – A Dramaturgia do Terror (São Paulo, Brasiliense,1983) Fernando Peixoto informa que “Woyzeck é formado por 27 cenas curtas e em certa medida autônomas (...). Cada instante vale por si mesmo, aprofundando uma situação ou uma relação”. São cenas que se articulam de forma autônoma, justapostas, como no teatro épico que será desenvolvido por Brecht. Já Sábato Magaldi, no texto “Woyzeck, Büchner e a condição humana”, publicado no livro Büchner na Pena e na Cena (São Paulo, Perspectiva, 2004, organização de J. Guinsburg e Ingrid D. Koudela), diz que “Woyzeck compõe-se de vinte e cinco cenas, que não guardam unidade de lugar e tempo”. Nesse mesmo livro, há uma versão composta por vinte e sete cenas, iniciando-se com a cena “campo aberto. A cidade a distância. Woyzeck e Andres cortam varas nas moitas”. Na sua adaptação em verso da peça de Büchner, Fernando Marques optou pela versão com vinte e seis cenas, tendo ele tomado como texto-base a tradução feita por João Marschner e publicada pela Ediouro. Nessa versão, inicia-se com a cena “Quarto”, em que Woyzeck faz a barba do Capitão. Vale lembrar ainda que Fernando cria um epílogo, finalizando a peça (se é que se pode afirmar isso) com a cena do Velho e da Criança. Em algumas versões, entende-se que Franz Woyzeck morre afogado. Pode-se dizer que teria se suicidado. Noutras, ele continua vivo. Em , o trágico personagem de Büchner morre afogado, ou pelo menos é o que se pode depreender da sua ação de ir cada vez mais para o meio do rio.

Todas essas variações são possíveis porque o texto deixado por Büchner ficou inacabado e sem a indicação da organização sequencial das cenas. Desse modo, cada encenador pode fazer o arranjo que achar mais pertinente.

Woyzeck/Zé – dramaturgia universal.

Woyzeck é um caso único na história da dramaturgia universal: inacabado, ainda um esboço, tornou-se, no entanto, um texto capaz de influenciar dramaturgos como Bernard Shaw, Bertolt Brecht, Beckett e Artaud. “Do naturalismo em diante, e mais especificamente do expressionismo, desenvolve-se um processo ininterrupto de recepção da obra büchneriana que se faz sentir sobremaneira no panorama literário e cultural da Alemanha”, declara Irene Aron no texto “Georg Büchner e a Modernidade Extemporânea”, publicado em Büchner na Pena e na Cena (São Paulo, Perspectiva, 2004, organização de J. Guinsburg e Ingrid D. Koudela). O alemão Georg Büchner, embora tenha morrido tão jovem, tornou-se precursor do teatro moderno ao conceber uma obra do porte de Woyzeck, em que a crítica social mescla-se, perfeitamente, à indagação metafísica, ao mesmo tempo em que rompe com a estrutura do teatro aristotélico, impondo a necessidade de que se conceba um novo espaço cênico.

Segundo Fernando Peixoto, Woyzeck “constitui o instante histórico em que o proletariado surge na qualidade de protagonista na dramaturgia universal”. Nesse caso, ele assume o primeiro plano para viver o drama de uma existência marcada pela exploração, pela miséria e pela humilhação. O soldado Woyzeck, por exemplo, sofre sob o comando do Capitão, a quem presta pequenos serviços, é usado por um médico inescrupuloso como cobaia num experimento inútil, além de ser agredido e humilhado pelo Tambor-mor, amante da sua mulher. A Woyzeck resta deixar-se dominar pelo ciúme ou pelo desejo de vingança, no caso, contra a parte mais fraca ou tão desprotegida quanto ele, Marie, sua companheira.

No de Fernando Marques, todo esse ambiente opressivo e dilacerante continua a afligir o protagonista, só que agora expresso em versos metrificados, ora em redondilha maior, ora em redondilha menor, ora em decassílabo, ora misturando um e outro. “A métrica varia de cena para cena ou no interior de cada uma delas, como se vai perceber (...)”, informa-nos o autor. A cena “O quarto”, por exemplo, que abre a peça, é toda em redondilha menor. Diante do estado sempre aflitivo do Capitão em relação à passagem do tempo ou ao que fazer com o tempo que lhe sobra após concluída uma tarefa, esse ritmo acelerado acentua ainda mais esse seu pavor metafísico: “Calma, José, calma!/Assim fico tonto./O bigode pronto/em tempo tão curto/não vale uma palma./Calma, homem, calma! Ganhei dez minutos/exatos, enxutos./Pra que tanta pressa?/Mais vale é a alma.../Pensa, José, pensa:/só tens trinta anos,/trinta lindos anos,/horas, dias, meses.../A vida é imensa!”.
                                   Cena do filme Woyzeck, Werner Herzog

Como outras obras de vanguarda, Woyzeck não encontrou espaço nem interlocutores em sua época, tendo sido encenada somente cem anos depois do nascimento do seu autor. Isso em 1913, em Munique. De lá para cá, o texto-fragmento do jovem autor alemão ganhou novas encenações, dentro e fora da Alemanha, e adaptações, tanto para a ópera quanto para o cinema.  A mais famosa adaptação para ópera desse texto de Büchner foi realizada pelo jovem compositor Alban Berg, com a obra-prima Wozzeck (a grafia do título deve-se a um erro cometido pelo escritor alemão Karl Emil Franzos, na primeira edição da peça de Büchner, em 1879, e na qual o compositor alemão se baseou). No cinema, ganhou também uma versão impactante. Trata-se do filme Woyzeck, do diretor alemão Werner Herzog (1979). Na magnífica interpretação de Klaus Kinski, podemos visualizar a figura delirante e frágil de Franz Woyzeck em sua jornada cotidiana de perdedor. No Brasil, foi adaptado (ou recriado) em 2002 com dramaturgia do escritor e roteirista Fernando Bonassi e direção de Cibele Forjaz, tendo Matheus Nachtergaele como intérprete do personagem-título. Nessa recriação, ganhou o sugestivo título de Woyzeck, O Brasileiro e apresentou o protagonista não como um soldado, mas sim como um sofrido trabalhador de uma olaria. O de Fernando Marques aguarda ainda por uma montagem que o apresente de fato ao grande público. Até o momento, foram feitas apenas leituras dramáticas e montagens acadêmicas dessa bela e ousada adaptação do texto do jovem dramaturgo alemão.
                                         Cena de Woyzeck, o brasileiro                                      

Temos já uma tradição de textos teatrais compostos em versos, como as peças Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gular; Gota d’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes; A Farsa da Boa Preguiça, de Ariano Suassuna, entre outras. A adaptação feita por Fernando Marques do texto de Büchner filia-se a esse veio de boa dramaturgia nacional e, por isso, faz-se urgente que seja levada aos palcos. Não precisamos esperar um século para que isso aconteça; façamos então coro às palavras do autor: “Os versos condensam também, no caso das peças brasileiras citadas, a intenção de articular de maneira lúdica e empática, em tom popular, a fábula, as personagens, os conceitos que o dramaturgo queira transmitir ao público.  Zé também quer – por que não? – ser popular”.      
  
(Este texto foi publicado, originalmente, na revista eletrônica Diversos Afins)

domingo, 28 de junho de 2015

Piada?

Por Geraldo Lima

O cara chega para você e mostra uma imagem no celular, em que um negro, vestido de vigilante, guarda a entrada de um estabelecimento qualquer. Então o cara diz, com a intenção de provocar graça: Não parece o Joaquim Barbosa? Há, de fato, uma legenda acima da imagem, que diz o seguinte (se não me falha a memória): “O novo emprego do ex-ministro Joaquim Barbosa”.

A intenção é esta: fazê-lo rir daquela imagem que satiriza a figura do ex-ministro Joaquim Barbosa. Mas por que aquilo deveria fazê-lo rir?  Embora você nunca tenha gostado do estilo de o ex-ministro agir como magistrado, tampouco votaria nele numa eventual candidatura à Presidência da República, não encontra motivos para dar risadas. Há um travo na garganta que o paralisa, que começa a comprimir seu coração. Uma lucidez que não lhe permite entregar-se cegamente à galhofa mantém-lhe os olhos bem abertos, dilatados ao extremo.  No ato, você enxerga ali a verdadeira intenção daquela imagem. É a sociedade brasileira apontando, de acordo com sua visão racista, com os resquícios ainda da casa grande e da senzala, o lugar do negro. O lugar do negro e do pardo. O lugar do negro, do pardo e do mulato na nossa estrutura social! Que história é esta, não é?, de o negro achar que pode ser outra coisa senão isto: um vigilante ou um segurança. Quem disse que um negro, neste país, pode aspirar a ser um ministro, ainda mais da mais alta Corte da Justiça, o STF? Essa é a mensagem dura e cruel que aquela imagem, travestida de piada, quer nos dizer.

Mas o cara espera que você ria, mesmo porque ele já está rindo e o ambiente, naquele instante, está todo contaminado por esse clima de alegria e descontração, com todos exibindo, em seus celulares, vídeos muito engraçados. Você, e somente você, iria querer então desafinar o coro dos contentes? Iria posar de chato numa situação dessas, mesmo que a leitura daquela imagem (e olha que você não queria isso, de verdade, ainda mais num momento festivo) tenha rasgado de vez o véu das ilusões? Mas o cara lhe mostra a imagem e espera que você ria, e ria bastante, às gargalhadas. Você ri, fazer o quê? Mas o cara não percebe, nem poderia perceber, que não se trata de um riso: é uma dor, uma ferida, um rasgo na carne o que lhe salta do rosto.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Loucos?




Por Geraldo Lima

Antigamente (e digo isso só por força de expressão mesmo), uma pessoa que andasse pela rua falando sozinha (falando e gesticulando!) era, sem dúvida alguma, louca. Era o diagnóstico mais preciso que já conheci. Havia, inclusive, as que, além de falar com o invisível, costumavam se esmurrar. Esmurravam em si, talvez, o inimigo ausente.

Conheci uma dessas pessoas. O sujeito era alto, cabelos desgrenhados, a cara de boxeador que só apanha. Rezava a lenda que ele havia batido na mãe e por isso ficara daquele jeito. Morria de medo dele. Melhor: tinha pavor! Era avistá-lo ao longe e eu pegava um desvio de quilômetros de distância.

Hoje não é mais assim. Vez ou outra nos deparamos com alguém falando sozinho, gesticulando, bradando até, e, assim que vamos lhe aplicar o diagnóstico da loucura, o engano se desfaz. Descobrimos, entre o alívio e o espanto, que essa pessoa, na verdade, fala ao celular, através de um fone de ouvido e um microfone, com alguém distante. Tudo muito camuflado, quase parte do corpo. Por conta disso (e talvez por reflexo do passado), já até mudei de fila em supermercado, sacolão e banco ao ver alguém, à minha frente, falando sozinho. Falando e gesticulando. Alguns, mais exagerados, até esmurram o ar.  

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A voz


Por Geraldo Lima


O telefone toca e saio correndo do banheiro enrolado na toalha. Chego ainda a tempo de atender e ouvir do outro lado a voz que vem me aporrinhando há dias. Voz de homem, fazendo-se de educado e sedutor. "Olá, boa-noite, tudo bem com você?", ouço e, de imediato, sinto vontade desligar na cara do sujeito. (Já me ergui da mesa às pressas, em meio à refeição, para me deparar com essa mesma voz de telemarketing brotando de um universo paralelo, moldado pela tecnologia e pela frieza dos negócios.) Sinto vontade, mas não o faço. Desta vez estou disposto a ir até o fim, para ver os desdobramentos desse enredo já gravado. A voz aguarda minha resposta. Deve pensar: que cara mal-educado, mas, ainda assim, continua. "Você tem TV por assinatura?". Mantenho-me calado, só aguardando as próximas falas do ser eletrônico que ousou me tirar do banho. Não há respiração do outro lado. Parece mesmo não haver vida. Só máquinas e intenções frias e extremamente calculadas. Deve ter pensado que eu, além de mal-educado, tinha um baixo nível de escolaridade, pois fez uma pequena mudança na pergunta: "Você tem algum tipo de TV a cabo?". Não sei se foi impressão minha, mas o tom de voz estava mudando, parecia tornar-se impaciente, meio rude. Mas, como era possível?! Estava tudo tão calculado assim? Essa voz era capaz de exprimir algum tipo de emoção? Comecei a gostar do jogo, a sentir (ainda que fosse ilusório) que estava ganhando. "A NET agradece a sua atenção!", e dessa vez não tive dúvidas: a voz eletrônica estava irritada. A voz eletrônica deixou escapar algum tipo de sensibilidade, de emoção pós-humana. Ah, da próxima vez, só por curiosidade literária, vou responder uma ou outra das suas perguntas para ver se essa previsibilidade eletrônica é infinita.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Neste 15 de março

 Por Geraldo Lima

Neste 15 de março, ficamos em casa.

Neste 15 de março, recebemos a visita de duas amigas de longa data, e a casa se encheu de afetos e palavras.

Neste 15 de março, saí para comprar agrião, acelga e vagem na feira de hortifrutigranjeiros do Colorado.

Neste 15 de março, fui ao Plano Piloto buscar e levar uma das nossas amigas, que sofre de câncer, e vi faixas chamando para a rua.

Neste 15 de março, comemos yakissoba, preparado pela nossa amiga japonesa, e, entre uma garfada e outra, recordamos nosso passado em Planaltina e alhures.

Neste 15 de março, revimos fotografias da nossa juventude repleta de energia e sonhos, e bateu uma nostalgia danada daquele tempo vivido já no final dos anos de chumbo.

Neste 15 de março, minha esposa, usando o celular, fotografou fotos do álbum de uma das nossas amigas e as postou no Face, alardeando o quanto éramos jovens e magros.

Neste 15 de março, não liguei o televisor, nem li o Correio Braziliense, nem acessei a página do UOL.

Neste 15 de março, li um texto sobre o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini, falando da sua angústia em relação ao cenário político da Itália da década de 1970.

Neste 15 de março, li alguns trechos do romance “A chave de casa”, da escritora brasileira Tatiana Salem Levy e fui transportado para Esmirna, na Turquia – ah, o mágico poder da literatura!

Neste 15 de março, postei um texto no Twitter e outro no Facebook criticando aos que pedem a volta dos militares ao Poder – tentei ficar calado, mas não consegui.

Neste 15 de março, falamos do nosso desencanto com o PT, do quanto nos sentimos frustrados e traídos com suas derrapadas no governo, mas nem por isso marcharíamos ao lado dos Bolsonaros da vida.

  

domingo, 1 de março de 2015

Seu carnaval



Por Geraldo Lima

Você brincou o Carnaval, como todo bom folião, ou ficou em casa repousando e zapeando em busca de programas televisivos para além do reinado de Momo?

Você se esbaldou na folia sem culpa nem medo ou buscou o sossego de um retiro espiritual na tentativa de repor as energias com orações ou meditações?

Você pulou nalgum bloco de carnaval até cair ou se manteve de pé, na labuta dos que não têm descanso nem em época de festa global?

Você sambou na avenida ou dormiu até tarde após passar a noite inteira assistindo pela TV os desfiles das escolas de samba do Rio e de São Paulo?

Você foi atrás das velhas marchinhas de carnaval, numa cidade do interior, ou nem deu bola pra nostalgia e se deixou arrastar pelas novidades dos trios elétricos da Bahia?

Você brincou, pulou, beijou e se entregou de corpo inteiro ou tudo não passou de ilusão para acabar em lágrimas e dor na quarta-feira?

Você botou a mais bela e cara fantasia para se sentir rei ou rainha na multidão ou preferiu usar somente a velha e surrada máscara de todos os dias?

Você foi destaque nalgum carro alegórico, sentindo-se acima dos mortais, ou se encontrou mesmo foi no asfalto, junto à alegria dos anônimos?

Você encontrou, em meio ao delírio dos foliões, o amor da sua vida ou voltou para casa mais sozinho ou sozinha do que se encontrava antes de se jogar na folia?


Você ainda está em transe com o batuque dos pandeiros, surdos, agogôs e tamborins ou já jogou no lixo a fantasia e começa a experimentar na carne a dura realidade pós-folia?

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Duas crônicas




Por Geraldo Lima



Sabe quando você quer ler muito um livro e não o encontra na estante ou na pilha de livros num canto da casa? Você tem certeza (ou acha que tem) de que o comprou, só não se lembra do título (deve tê-lo comprado junto com outros tantos, daí o esquecimento, é bom dizer isso pra coisa não ficar meio absurda), mas quer lê-lo de qualquer maneira, sente-se até angustiado por não encontrá-lo, um leve desespero, vontade de se socorrer de São Longuinho (melhor não se entregar a essas superstições, dar pulinhos, meio ridículo, não?), enfim, de repente bateu a vontade de ler algo daquela autora ou daquele autor, e você comprou o livro dela ou dele (há lacunas na memória, mas, caramba!, então por que veio à mente a ideia de um livro de cujo título você não se lembra, mas sabe que é da autora tal ou do autor tal?!). Você procura por esse livro à exaustão, até desistir e pegar outro livro. Aí, no outro dia, ou dias depois, você resolve dar mais um espiada (a esperança ainda não morreu) e, para seu espanto, lá está o livro! Não o que você pensava existir ou ter comprado, nem mesmo a autoria corresponde à imagem que você tinha na mente. Um outro livro, uma outra autora, um outro autor, mas era de fato aquele que você tanto desejava ler dias atrás.

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Vez ou outra algum banco me telefona avisando que acaba de disponibilizar um crédito na minha conta. Esta semana ligaram. O funcionário me disse: "Seu, Geraldo, acabamos de disponibilizar um crédito na conta do senhor. Está interessado?" Respondi na hora: "Não. Obrigado." Não tenho dinheiro sobrando, mas também não estou ainda no desespero, precisando cair nas garras da agiotagem. Sonho mesmo é com o dia em que algum banco me telefone anunciando (ao som de trombetas celestiais) que, por eu ser um cidadão honesto, desses que pagam regularmente os impostos devidos e as contas pessoais, por eu ter sido até então um trabalhador assíduo e dedicado à profissão, um ser que cultiva a paz e a harmonia social, com uma aura irradiando sempre bons fluidos (e blá-blá-blá-blá...), por conta de tudo isso e muito mais, eles estão disponibilizando o crédito de um milhão (não desejo muita coisa) na minha conta, um presente, seu Geraldo, não precisa nem pagar! Aguardo ansioso esse telefonema das linhas de frente do sistema financeiro.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

XIV. Revolução de Trinta




Por Geraldo Lima

(Trecho de uma carta encontrada nos pertences de minha vó.)       
        
Amália,
        
A escrita, commo podes ver, vae torta, diversa da de antes, não por me encontrar trêmulo no mommento por cauza da metralha, das grannadas, do transtorno que é viver essa tempestade das idéas, mas por me restar, meo amor, somente a esquerda, pôsto que a destra levou-a a fera da guerra. Ainda assim ella diz tudo, do amor e da saudade que trago em mim, pensando em ti agora, e se ao te rever não correr desembalado rumo aos teus braços, não será por falta de vontade, mas tão-somente por ter me levado uma das pernas a bôca faminta d’uma grannada.
         (...)

(Do livro Tesselário, Selo 3 x 4, Editora Multifoco.)